PLC-09/2025, do governo de São Paulo, compromete a autonomia das pesquisas e pode ser votado na próxima semana
O banco de germoplasma de mandioca do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) completa 90 anos em 2025, mas em vez de comemoração, a comunidade científica celebra este marco com preocupação.
O Projeto de Lei Complementar 9 de 2025 (PLC-9/2025), que pode ser votado na próxima semana, na Assembleia Legislativa do Estado, compromete a autonomia das pesquisas realizadas em 16 Institutos Públicos, incluindo o IAC, e, segundo a Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC), coloca em risco todos os bancos de germoplasma construídos ao longo do último século.
O PLC 9, de autoria do governo de São Paulo, extingue o Regime de Tempo Integral (RTI) e a Comissão Permanente do Regime de Tempo Integral (CPRTI), órgão de Estado composto por representantes eleitos pelos próprios pares, que expressam a pluralidade das áreas do conhecimento, com a função de gerir a carreira de pesquisador e avaliar trabalhos de pesquisa.
“Se a pesquisa perder autonomia, automaticamente a credibilidade dos estudos realizados com estes bancos de germoplasma será afetada. Este projeto que ataca a carreira de pesquisador é uma ameaça real a este patrimônio premiado internacionalmente e que serve de referência para o Brasil e o mundo”, afirma Helena Dutra Lutgens, presidente da APqC.
A crise do café no final dos anos 1920 foi contornada, entre outras medidas, com a diversificação da agricultura paulista. A pesquisadora Teresa Losada Valle, do IAC, lembra que para dar sustentação a esse projeto foi feita uma profunda reforma do IAC “equipando-o com os meios necessário para cumprir sua nova missão. Reestruturação administrativa, ampliação dos recursos humanos e materiais e criação de novos acervos de apoio a pesquisa. O resultado foi fantástico e o IAC tornou-se referência mundial em pesquisa na agricultura tropical”, afirma.
Entre os acervos mais importantes, os bancos de germoplasma passaram a reunir acessos de diversas espécies cultivadas, incluindo o da mandioca, espécie originada no Brasil.
“Quando os europeus chegaram era a alimentação básica das populações nativas e continua até a atualidade uma das mais importantes fontes alimentícias. Nos últimos dez anos, o Brasil produziu aproximadamente 20 milhões de toneladas por ano”, relata a pesquisadora. “O Brasil possui a maior diversidade genética de mandioca do mundo, o que ressalta a importância estratégica dos nossos bancos de germoplasma”.
Iniciado em 1935, o primeiro registro foi a variedade SRT-1 Vassourinha Paulista. Desde então constam em seus arquivos mais de 1,6 mil registros. “Muitos desses acessos foram perdidos por não resistirem às doenças”, relata.
A pesquisadora conta que durante e após a Segunda Guerra Mundial a variedade SRT 59 – Branca de Santa Catarina, foi o alicerce da expansão do cultivo de mandioca no Estado de São Paulo para substituir a variedade SRT-1 Vassourinha Paulista, por ser mais produtiva e mais resistente às doenças.
“O objetivo era gerar um tipo de farinha para misturar ao trigo para produzir pão e para a exportação de amido”.
Nos anos 1960 foi obtida por cruzamentos a variedade IAC 24-2 Mantiqueira, também resistente às doenças, considerada a mais produtiva da coleção mundial do Centro Internacional de Agricultura Tropical (CIAT), o que a levou a ser distribuída para vários países do mundo, tendo sido amplamente cultivada em Cuba.
Apesar de ser parte da história da América Latina, apenas após a criação do banco de germoplasma os cientistas começaram a conhecer a variabilidade genética da mandioca. “Na década de 1970, o IAC já havia registrado mais de 1,2 mil acessos, a partir de trocas entre instituições de pesquisa e coletas próprias, mas apenas pouco mais de uma centena dos acessos estavam preservados”, diz a pesquisadora.
Ainda nos anos 1970, com a mecanização do campo, populações rurais migraram para as cidades, e a mandioca ganhou novos “terrenos”, passando a ser cultivada no quintal das casas.
“Eram pessoas que retinham o material genético e também o conhecimento sobre a origem de cada variedade, mas que iriam se perder com o tempo, uma vez que as novas gerações não se interessariam pelo cultivo no quintal”, relembra a pesquisadora.
Para não perder este ‘patrimônio científico e popular’, na década de 1980 IAC organizou e deu início a uma coleta sistematizada de materiais genéticos de mandioca em mais de 300 cidades do interior e litoral de São Paulo. O objetivo era coletar acessos que seriam preservados na Estação Experimental de Ubatuba.
“Nós fizemos cinco viagens percorrendo a malha rodoviária do Estado, visitando os bairros e perguntando de casa em casa quem cultivava mandioca, perguntava sobre origem e se poderíamos coletar amostras”.
Com este trabalho, o Instituto Agronômico identificou cerca de 600 acessos de todas as regiões brasileiras e de diferentes ecossistemas e culturas. “Apesar de ter um pequeno número de variedades comparativamente a outros, tornou-se um banco de germoplasma modelo por conter uma ampla representatividade da diversidade genética da espécie”, relembra Teresa.
Variedade produtivas e resistes
A pesquisa pública dedicada ao melhoramento genético levou o Instituto Agronômico de Campinas às variedades, IAC 12 (cultivada no cerrado) IAC 13, IAC 14, IAC 15 e IAC 90 voltadas à indústria (farinha e amido). Todas muito produtivas, resistentes a doenças, adaptadas ao plantio mecânico e com alto rendimento industrial. A variedade IAC 576-70, mandioca de mesa obtida a partir do cruzamento das cultivares SR-797 Ouro do Vale, com polpa amarela, e IAC 14-18 Verdinha. Segundo a pesquisadora, a cultivar se mostrava muito mais produtiva que a convencional, mais resistente à bacteriose, e ainda ter considerável teor de Beta-carotenos, que se transformam em vitamina A no corpo humano
“Como forma de difundir esse conhecimento que nasceu da pesquisa pública, a CATI, através da rede de assistência técnica, organizou a produção de material de plantio e distribuiu pequenos feixes para pequenos agricultores da área rural. Nas cidades, distribuiu uma pequena quantidade, nas igrejas logo após as missas, a população que cultivava mandioca no quintal, o que fez com que IAC 576-70 se tornasse a variedade mais cultivada do Estado”, conta. “Esse trabalho teve profunda repercussão na segurança alimentar na população urbana periférica”.
Ao longo dos últimos anos, muitas outras variedades foram pesquisadas e lançadas pelos pesquisadores do IAC. Além disso, linhas de pesquisa passaram a estudar adubação verde, policultivo, culturas de cobertura, plantio direto e sistemas agroflorestais, segundo artigo técnico publicado pelo IAC em junho de 2023.
Em 2025, o Brasil deve produzir mais de 20 milhões de toneladas de mandioca, conforme estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Outros bancos ameaçados
Além do banco de germoplasma de raízes e tubérculos, o Instituto Agronômico de Campinas abriga milhares de acessos de outras culturas. O do café, instalado na Fazenda Santa Elisa, em Campinas, concentra 130 espécies descritas e o primeiro cruzamento para melhoramento genético remonta à década de 1930.
Os pesquisadores do IAC também são os ‘guardiões’ de bancos de germoplasma de cana-de-açúcar, citros, amendoim, milho, feijão, frutas, além das espécies hortícolas, como alho, cebola, batata e a própria mandioca.
Outras coleções
O Instituto de Zootecnia mantém rebanhos para conservação de raças brasileiras adaptadas, e um banco de sêmen e embriões para fins de pesquisa e melhoramento genético. Já o Instituto Biológico conserva isolados de fungos fitopatogênicos, além de ceparias de bactérias e vírus de interesse agropecuário e um dos mais antigos acervos de entomologia econômica do Brasil, com milhares de exemplares.
No campo da biodiversidade, o Instituto Florestal, mantém o herbário “Dom Bento José Pickel” com mais de 50 mil exsicatas de essências florestais herbáceas, arbustivas, e principalmente arbóreas da flora nativa paulista e uma xiloteca com mais de quatro mil espécies florestais.
O Instituto Geológico possui uma coleção com amostras geológicas, minerais e fósseis que apoiam pesquisas sobre riscos naturais e uso do solo. Enquanto o Instituto de Botânica, abriga o herbário “Maria Eneyda Pacheco Kauffmann Fidalgo”, com cerca de 550 mil exemplares botânicos, sendo um dos maiores da América Latina, além de bancos de germoplasma de plantas ornamentais e nativas, importantes para programas de restauração ecológica.
O Instituto de Pesca atua no melhoramento de espécies aquícolas nativas e exóticas, como tilápia. O Instituto Pasteur conserva linhagens virais e cepas de agentes infecciosos, com foco especial em raiva, para apoio a vigilância em saúde pública.
“Os acervos e os bancos de germoplasma são patrimônios científicos de valor incalculável, porque armazenam e conservam a variabilidade genética de plantas, animais e micro-organismos, desempenhando um papel central para a segurança alimentar, além de serem tesouros para pesquisas ligadas às adaptações climáticas, tudo ameaçado por decisões de governo, como o PLC 9/2025, que podem impactar toda a sociedade”, reforça Helena Dutra Lutgens.